terça-feira, 5 de abril de 2016

Holanda- O século XVII holandês

"O Geógrafo", de Jan Vermeer (c. de 1668/ 1669)

Toda obra de arte carrega consigo a marca de seu tempo, o lugar e a época em que foi elaborada influenciando em suas características. Não existe algo como uma obra de arte pura, etérea, completamente desvinculada ou distanciada do mundo social, político, econômico e cultural ao seu redor. Tendo tal consideração em mente entende-se que a obra “O Geógrafo” de Jan Vermeer está integrada a realidade holandesa do século XVII, e a ela deve ser associada e compreendida.


Em 1568 teve início a Guerra dos Oitenta Anos onde vários principados, convertidos ao protestantismo, dos países baixos liderados pelo príncipe Guilherme de Orange entram em guerra contra a Espanha (até então sob domínio da Espanha e parte do império dos Habsburgo) em especial devido a limitações e perseguições religiosas e o crescente absolutismo autoritário de Felipe II.  A guerra arrastou-se por décadas, sendo essencial para os holandeses o uso da marinha (por vezes os revoltosos ficaram restritos a estreitas faixas de terra à beira mar).

Com a morte de Filipe II em 1598 asituação congelou-se e um armstício foi assinado. Em 1579 haviam sido criadas as Províncias Unidas, mas apenas em 1648 com a paz de Munster foi formalizada e reconhecida (em especial pela Espanha) a República das Sete Províncias dos Países Baixos como estado independente, consistindo em sete províncias soberanas (Holanda, Zelândia, Utreque, Frísia, Groninga, Overijssel e Guéldria). Apesar de se intitular uma república, deve-se levar em consideração que diferia das repúblicas atuais, mantendo ainda uma forma com elementos feudais e do Antigo regime, como o “stadhouder'” (traduzido aproximadamente como “governador”), um cargo com bastante poder político ocupado pelos herdeiros de Guilherme de Orange.

O século XVII foi aquele em que a república holandesa teve maior preeminência política, econômica e bélica no jogo de poder e política europeu. Após a descoberta do noivo mundo e o afluxo de metais preciosos, em especial a prata que vinha para a Espanha, mudanças econômicas vão ocorrer, como um aumento inflacionário (em especial na Espanha) e diferentes práticas econômicas. Enquanto Espanha e Portugal praticam o bulionismo, apenas tentando arrecadas e acumular cada vez mais metais preciosos, a Holanda (nesse momento ainda sem um império colonial) dedica-se ao comércio.

Aos poucos vai ocorrendo uma redistribuição de renda em favor de posturas mais empreendedoras, enquanto as economias portuguesas e espanholas estagnam e mesmo enfrentam problemas, independente da riqueza oriunda de seus impérios coloniais. Tal crescimento econômico holandês é parcialmente responsável pela manutenção de sua independência, Amsterdã sendo na época a cidade europeia que mais crescia,a média de população urbana na república holandesa era de 15% da população contra uma média de 5% da média europeia. O mercado holandês foi pioneiro em seguir para uma lógica capitalista (ainda que pré industrial), consciente e atenta a custos, lucros do câmbio e aumento dos preços.

A navegação é a atividade símbolo dessa postura da república holandesa. Tanto o preço inicial quanto os custos operacionais dos navios holandeses era, cerca de 1/3 menores que dos outros países- inclusive da Inglaterra que ainda não era a potência naval que marca a história. Mesmo na tradicional república comercial de Veneza o crescimento holandês pronuncia-se: em 1600 cerca de metade dos maiores navios a serviço de Veneza eram de construção holandesa.

Os Holandeses demoraram mais que franceses e ingleses  a atacar os domínios ultramarinos da Espanha e Portugal, mas o fizeram de forma diferente. Enquanto entre franceses e ingleses a prática da pirataria e de corsários fosse inicialmente a norma, limitando-se a assaltos e atos de pirataria, os holandeses tentaram de fato ocupar os territórios e destruir a rede ibérica de comércio, substituindo-a por uma própria. Em 1602 várias expedições de companhias holandesas estabeleceram relações comerciais no sudeste asiático, em especial com a Indonésia.

Bandeira da Companhia das Índias Orientais holandesa

Foi formada em 1602 a Companhia das Índias Orientais e seu sucesso foi de grande escala: em cerca de uma década os portugueses foram quase totalmente varridos do comércio de especiarias. Em 1619 a Companhia tomou Jacarta dos javaneses, transformando-a na Batávia (capital do império holandês no sudeste asiático). Desalojou os portugueses de Malaca em 1641, além de também afastá-los do Ceilão e de pedaços do sul da Índia entre 1638- 1658, além de substituir os portugueses como únicos europeus permitidos a realizar comércio com o Japão em 1641. Mesmo que os portugueses mantivessem alguns pontos isolados (como Macau ou Timor) e os espanhóis ocupassem as ilhas Molucas (a partir de um antigo forte português em Tidore), o comércio da imensa área que compreendendo o sudeste asiático, Indonésia e Japão estava majoritariamente nas mãos da Companhia das Índias Orientais e rendia altos lucros a seus acionistas.

Bandeira da Companhia das Índias Ocidentais

Tais êxitos levaram a criação da Companhia das Índias Ocidentais em 1621, para desenvolver ação semelhante no oceano Atlântico. Tentou-se em 1621 dominar e ocupar Salvador, na colônia brasileira, mas os portugueses a retomaram em 1625. Os holandeses conseguiram, entretanto, capturar a armada espanhola que carregava um grande carregamento de prata em 1628 e também estabeleceram feitorias em Curaçao, no Caribe (1634), tomaram alguns postos portugueses na África, em especial Guiné (Mina, em 1638) e Angola (Luanda, 1641), além de tomar Recife em 1630 (boa parte dos recursos usados na invasão vieram do carregamento de prata espanhol apreendido pelos holandeses), onde permaneceram até serem expulsos em 1654 (momento tradicionalmente conhecido como Insurreição Pernambucana na historiografia brasileira).

"Engenho de Açúcar", de Frans Post (1640)

Na região de Recife pintores como Frans Post e Albert Eckhout trabalharam a serviço de Maurício de Nassau, produzindo desenhos e pinturas da flora, fauna e população do lugar. Tais pinturas não eram apenas produções artísticas e se de fato também eram voltadas a atender um gosto e curiosidade pelo exótico, também tinham um teor informativo, de acúmulo e transmissão de conhecimentos e informações, algo que em muito interessava as companhias de comércio e ao governo holandês pelo potencial de utilização tanto no comércio quanto na ocupação e administração dos territórios.


"Mulher Mameluca", de Albert EckhouT (1641)

A ciência e o conhecimento não eram algo apenas teórico ou acadêmico para a Holanda do século XVII, possuindo também implicações práticas para atividades como comércio e navegação e estando ligadas ao potencial de lucro dessas atividades para a Holanda do século XVII. Isto está bastante presente na obra de Vermeer, onde encontram-se referências às ciências, como o mapa, presente em diversos quadros- A cartografia era, afinal, uma ciência nova e muito valorizada, muito útil para o comércio e navegação. “O Geógrafo” (1668-69) é uma manifestação desse apreço ao conhecimento, mas não um conhecimento meramente “puro”, acadêmico e teórico, e sim também um conhecimento com funções práticas e mesmo lucrativas

A proeminência holandesa vai crescendo na metade do século XVII, em termos de volume comercial e tonelagem de navios, apenas começando a decair após os ingleses decretarem uma série de leis de proteção à navegação nas décadas de 1650 e 1660, reforçados com uma política naval agressiva. No final do século XVII, o aumento e fortalecimento das frotas francesas e inglesas, somado ao surgimento de marinhas de guerra profissionais, força os holandeses a dividir as rotas marítimas com navios dessas nações. Mesmo no mar Mediterrâneo os navios franceses tomam espaço antes dominado por holandeses. Já em 1715 a prosperidade inglesa era evidente frente â Holanda, a cidade de Londres chegando a ter o dobro do tamanho de Amsterdã.